...no discurso de ontem
Sobretudo, responsável...
...não defraudou as expetativas, que nele depositei, desde o primeiro dia como Presidente da República...
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Um discurso brutal. O que disse Marcelo nas entrelinhas
Descodificação das palavras mais duras do Presidente até hoje:
pediu repetidamente demissão da ministra, exigiu "novo ciclo", criticou
Costa e ameaçou com "todos os seus poderes". Por Miguel Pinheiro.
O discurso do Presidente da República está a itálico e a interpretação e o comentário estão a amarelo:
“
A
primeira frase do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa parece a
constatação vazia de uma evidência, mas é a formulação de uma crítica
política certeira. Afinal, se, para usar a expressão escolhida por
Belém, o Presidente "é, antes de mais, uma pessoa", quem não será? Em
primeiro lugar, António Costa: esta terça-feira, até os socialistas
criticaram o primeiro-ministro pela forma fria e distante como reagiu à
tragédia naquela madrugada de segunda-feira, quando se dirigiu à sede da
Proteção Civil. Ao Expresso, Ana Gomes desabafou que António Costa "tem
de agir com cabeça fria, mas também tem de mostrar que tem coração". Em
segundo lugar, a ministra da Administração Interna, que perante a morte
e a destruição recomendou às populações que se tornassem "mais
resilientes às catástrofes". Em terceiro lugar, o secretário de Estado
da Administração Interna, que, numa madrugada de medo e tensão, disse
que "as próprias comunidades" deveriam "ser proactivas", em vez de
"ficarmos todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para
nos resolver os problemas". Para o Presidente da República, as vítimas
dos incêndios não representam histórias de fraqueza, mas de heroísmo. E
os 100 mortos que esta terça-feira estavam em todas as capas de jornais,
em todas as rádios, em todas as televisões e em todos os sites, além de
serem uma perda, são uma acusação. E são uma mancha - não só no mandato
do Governo, mas também no do Presidente. Marcelo não esquece que isto
também é com ele, como se se considerasse co-responsável por tudo o que
se fizer (ou não fizer) no futuro.
“Se falei aos portugueses primeiro como pessoa, foi para tornar
bem claro que sempre, e mais ainda em tempos como estes, olhar para os
dramas de pessoas de carne e osso com a distância das teorias, dos
sistemas ou das estruturas, por muito necessário que possa ser, é passar
ao lado do fundamental, na vida como na política. E o fundamental é o
que vai na alma de cada uma e de cada um dos portugueses. Mas mais de
100 mortos em menos de quatro meses , sendo um peso na consciência, são
igualmente uma interpelação política ao Presidente da República, que foi
eleito para servir incondicionalmente os portugueses. Para cumprir e
fazer cumprir uma Constituição que quer garantir a confiança e segurança
dos cidadãos.”
Para
alguns, será uma revelação. A expressão "Presidente dos afectos", ao
contrário do que muitos pensam e dizem, não é, afinal, apenas uma figura
de retórica ou uma arma de propaganda - é uma forma de entender a
figura presidencial. E isso, neste momento, é um problema para o
Governo. Com metade do país em choque e a outra metade em fúria, Marcelo
sente que ficar parado é trair o programa pelo qual foi eleito. Por
isso, repete o número que marca estes dias: "100 mortos", "100 mortos".
No discurso do 5 de outubro, Marcelo já tinha alertado que a segurança
interna deve ser vista "como penhor de tranquilidade e previsibilidade
por parte dos cidadãos".
“Se há realidade que objetivamente ocorreu com estas mortes e
estas duas e tão diferentes provações de um verão interminável foi a
fragilização de muitos portugueses. Não vale a pena negá-lo. (…) Ficaram
fragilizados perante o que lhes pareceu ser a insuficiência de
estruturas ou pessoas em face de condições meteorológicas, dimensão e
natureza de fogos tão diferentes daquilo a que estavam habituados.”
Não
vale a pena negar, ou minimizar, o problema. Se é verdade que houve
mais calor e mais fogos do que é habitual, isso não serve de desculpa
para "a insuficiência de estruturas ou pessoas", seja na Proteção Civil,
seja no Governo.
“Ficaram fragilizados perante leituras de relatórios sobre
Pedrógão, em especial a do relatório da Comissão Parlamentar
Independente, que acentuam dúvidas, temores, preocupações. Ficaram
fragilizados perante nova tragédia, três dias depois da divulgação do
relatório e por isso mesmo antes de ações possíveis por ele
recomendadas.”
No
seu discurso de ontem, António Costa tratou a Comissão Parlamentar
Independente que fez o relatório sobre Pedrógão como se fosse um mero
grupo de trabalho com a função de apoiar o Governo na preparação de
legislação. Mas, para o Presidente, ela não é nada disso: é um grupo de
peritos que aponta "dúvidas, temores e preocupações". Ou seja: não serve
para ajudar o Governo, serve para o acusar.
“Ficaram sobretudo fragilizados perante a ideia da impotência da
sociedade e dos poderes públicos em face de tamanha confluência de
catástrofes. Claro que uma tal fragilidade foi, ou é em muitos
casos, excessiva ou injusta, atendendo à extensão das áreas atingidas, à
virulência dos fogos e em particular à abnegação, ao heroísmo dos que a
pé firme estiveram mobilizados cinco meses seguidos ao serviço da
comunidade. Mas o certo é que a fragilidade existiu e existe, e
atingiu os poderes públicos. E exige uma resposta rápida e convincente.
E agora?”
O
Presidente admite que a "fragilidade" e "impotência" dos "poderes
públicos" não explicam tudo e recorda novamente as especiais condições
meteorológicas, mas insiste: muita coisa correu mal e é preciso uma
"resposta rápida e convincente". Na madrugada de segunda-feira, António
Costa tinha dito: "Essa obsessão de que falhou alguma coisa não faz
sentido". Vai passar a fazer todo o sentido.
“O Presidente da República pode e deve dizer que esta é a última
oportunidade para levarmos a sério a floresta e a convertermos em
prioridade nacional. Com meios para tanto, senão será uma frustração
nacional. Se houver margens orçamentais, que se dê prioridade à floresta
e à prevenção dos fogos.”
Dinheiro:
o Presidente quer que o Governo dê mais dinheiro à floresta e à
prevenção dos fogos. E não apenas mais dinheiro, mas um volume de
dinheiro a mais que mostre que de facto estamos perante uma "prioridade
nacional". Os números que se conhecem ajudam a explicar a preocupação do
Presidente. Na proposta de Orçamento para 2018, a Autoridade Nacional
da Proteção Civil recebe um aumento de 11% face ao orçamento deste ano,
sendo esse o valor mais alto dos últimos dez anos. E o Instituto da
Conservação da Natureza e Florestas, que tem competências na área de
defesa da floresta e dos parques naturais, também tem um reforço de
dinheiro. Mas, como escreveu há dias a Ana Suspiro no Observador, "estes
reforços na proteção civil e nas florestas não chegam para sinalizar
uma equivalência entre a prioridade política e os recursos atribuídos,
até porque estão longe de ser a exceção - na lista de serviços e fundos
autónomos do Estado, a maioria dos organismos recebe mais em 2018".
Claramente, o Presidente espera que o Governo aproveite o debate sobre o
Orçamento no Parlamento para abrir o cofre.
“Deve haver uma convergência alargada, porque os governos passam e é crucial que a prioridade permaneça.”
Se
até este momento foi o Governo a assistir ao discurso de Marcelo sem
conseguir piscar os olhos, chegou aqui o momento da oposição. O
Presidente avisa que é preciso existir "uma convergência alargada". Quer
dizer: pelo menos o PSD não terá como fugir. Neste ponto, Marcelo tem
um aliado inesperado. Rui Rio, de quem o Presidente não gosta (até
almoçou com Santana Lopes na véspera de ele anunciar que seria seu
adversário na corrida ao PSD), foi muito claro na primeira entrevista
que deu como candidato. À TVI, afirmou que "os partidos todos têm de pôr
os interesses partidários de lado e entenderem-se nas reformas
fundamentais para o interesse do país". Que exemplo deu? Precisamente: o
combate aos fogos.
“O Presidente da República pode e deve dizer novamente que espera
do governo que retire todas, mas todas, as consequências da tragédia de
Pedrógão, à luz das conclusões dos relatórios, como de resto o governo
se comprometeu publicamente a retirar.”
A
palavra "novamente" não está aqui por acaso. O Presidente tem dito uma,
duas, três, muitas vezes, que o Governo deve "passar das palavras aos
atos", mas até agora o primeiro-ministro tem preferido ignorar Marcelo
com um sorriso. E a repetição da palavra "todas" também não aparece
inocentemente. "Todas as consequências", neste caso, é a demissão da
ministra da Administração Interna, que António Costa mantém como se
fosse uma peça de mobília pregada ao chão.
“O Presidente da República pode e deve dizer que nessas decisões
não se esqueça daquilo que nos últimos dias confirmou ou ampliou as
lições de junho e olhe para estas gentes, para o seu sofrimento, com
maior atenção ainda do que aquela que merecem os que têm os poderes de
manifestação pública em Lisboa.”
Para
Marcelo, o barulho dos sindicatos nas ruas de Lisboa não pode valer
mais do que o silêncio das vítimas dos fogos. Nas últimas semanas, a
mais pequena reivindicação de uma qualquer classe profissional levou o
Governo a engordar o Orçamento. Agora, a mesma "atenção" deve ser
prestada a quem não consegue encher ruas, decretar greves, mobilizar
protestantes, ou exercer poder na "geringonça".
“Pode e deve dizer que abrir um novo ciclo inevitavelmente
obrigará o Governo a ponderar o quê, quem, como e quando melhor serve
esse ciclo.”
Aqui
estamos de novo, para que não reste qualquer dúvida: a ministra da
Administração Interna tem de sair. "Quem" melhor "serve" o "novo ciclo"
não é, seguramente, quem foi protagonista do velho ciclo.
“Pode e deve dizer que, se na Assembleia da República há quem
questione a atual capacidade do Governo para realizar estas mudanças,
que são indispensáveis e inadiáveis, então que, nos termos da
Constituição, esperemos que a mesma Assembleia soberanamente clarifique
se quer ou não manter em funções este Governo, condição essencial para,
em caso de resposta negativa, se evitar um equívoco, e de resposta
positiva, reforçar o mandato para as reformas inadiáveis.”
É
uma cobertura política do Presidente à moção de censura anunciada esta
terça-feira pelo CDS. Perante isto, os socialistas ficam sem chão. No
seu estilo habitual, Carlos César, líder parlamentar do PS, tinha dito
esta terça-feira que a iniciativa dos centristas era um "hábil jogo
político de chamar a atenção da comunicação social com medidas
espetaculares", mas esse discurso vai ter que ser abandonado
imediatamente - Marcelo anunciou ao país que o Parlamento tem a
legitimidade, e o dever, de discutir tudo. E de decidir tudo também: no
seu discurso, o Presidente não faz qualquer apelo à estabilidade, como
se lhe fosse politica e institucionalmente indiferente a continuação ou a
queda do Governo. Aliás, usa uma palavra críptica: segundo ele, a
aprovação da moção de censura poderia evitar um "equívoco". Mas que
equívoco? O da continuação do Governo? Há um outro ponto importante.
Como refere o Presidente, a moção de censura vai obrigar a uma
"clarificação". Até ao momento, o PCP e o BE têm ajudado o Governo pelo
silêncio e pela inação; mas, agora, vão ter que se levantar e votar, sem
"equívocos", para reforçar um mandato para fazer as reformas
"indispensáveis e inadiáveis".
“Pode e deve dizer que reformar a pensar no médio e longo prazo
não significa termos que conviver com novas tragédias até lá chegarmos.”
É
a resposta direta a outra infeliz frase de António Costa na madrugada
de domingo, quando disse o seguinte: "O país tem de ter consciência que a
situação que estamos a viver vai seguramente prolongar-se para os
próximos anos. O pacote florestal vai produzir efeito ao longo de uma
década. Se julgam que há alguma solução mágica estão completamente
enganados”. Pois bem, o Presidente sente que não "tem de ter
consciência" de nada disso. A existência de "novas tragédias" não é
admissível.
“Pode e deve dizer que estará atento e exercerá todos os seus
poderes para garantir que onde existiu ou existe fragilidade ela terá de
deixar de existir.”
Lá
vamos outra vez. A "fragilidade" que "terá de deixar de existir" tem
vários nomes, mas um vem à cabeça: Constança Urbano de Sousa. A ministra
sairá a bem ou mal, nem que o Presidente tenha de "exercer todos os
seus poderes".
“Pode e deve dizer que a melhor, se não única, forma de
verdadeiramente pedir desculpa às vítimas de junho e de outubro, e de
facto é justificável que se peça desculpa, é por um lado reconhecer com
humildade que portugueses houve que não viram os poderes públicos como
garante de segurança e de confiança, e por outro lado romper com o que
motivou a fragilidade, ou motivou o desalento ou a descrença dos
portugueses. Quem não entenda isto — humildade cívica e ruptura com o
que não provou ou não convenceu — não entendeu nada do essencial que se
passou no nosso país.”
Esta
terça-feira, durante a sua visita a Oliveira do Hospital, um jornalista
perguntou ao primeiro-ministro: "Não acha que o Governo devia pedir
desculpas às populações?". A resposta foi: "Nós temos, neste momento,
que concentrar-nos em fazer aquilo que é essencial". Para António Costa,
o "essencial" não é pedir desculpas; para Marcelo, é.
Para mim, como Presidente da República, o mudar de vida neste
domínio é um dos testes decisivos ao cumprimento do mandato que assumiu e
nele me empenharei totalmente até ao fim desse mandato. Impõem-no
milhões de portugueses mas impõem-no sobretudo os mais de 100
portugueses que tanto esperavam da vida no início do verão de 2017 e não
chegaram ao dia de hoje.”
Desde
que se tornou Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se metido
repetidamente na esfera do governo, chegando mesmo a admitir que estava a
ir aos limites dos seus poderes. Ao fazer isso, criou a legítima
expectativa de que não é apenas um corta-fitas e de que pode resolver
problemas. Não por acaso, as manifestações que na noite de terça-feira
protestaram contra a tragédia dos incêndios não foram marcadas para São
Bento, mas para Belém. O Presidente tem insistido com o
primeiro-ministro que "passe das palavras aos atos" - e agora percebeu
que é também isso que as pessoas esperam dele. Mais do que para António
Costa, este é, de facto, um "teste decisivo" para o Presidente.