domingo, 10 de março de 2013

Lembranças do Ti Zé "Fiambre"

 

Nunca consegui saber donde vinha esta alcunha mas o Ti Zé Fiambre foi uma das pessoas que marcou a minha infância.
Hoje associo-o a um acontecimento que se passou anos mais tarde e já quase no final da sua vida... 

Mas falarei disso mais à frente...

O Ti Zé Fiambre foi uma pessoa com várias atividades todas ligadas ao serviço da população. Ele foi sobretudo barbeiro mas, para além disso, também cortava o cabelo a meninas (sempre o mesmo corte a que nós chamávamos o corte "à tigela" devido ao formato arredondado), arrancava dentes, dava injeções e era companheiro e amigo do meu pai nas caçadas e na Banda Filarmónica...
Enfim, tratava das mazelas de quem acorria em busca do seu auxílio.
Eu fui uma dessas crianças a quem ele cortou o cabelo e mais tarde arrancou-me um dente mas essa memória traz-me a dor desse dia porque não foi fácil tal extração.
Nos últimos anos, o ti Zé fiambre, passava algumas horas calmamente a arrancar ervas daninhas num caminho que eu percorria na quinta dos meus pais. Foi numa dessas tardes que eu e o meu filho João nos cruzámos com ele e que se passou o tal episódio que hoje me tráz aqui.
O João era uma criança bastante curiosa e atenta e gostava de passar algum tempo a conversar com pessoas mais velhas.
Mas, naquele dia, ao cruzarmo-nos com o Ti Zé e talvez por distração o João todo feliz ao vê-lo diz "Boa tarde ti Zé Mortadela". Eu fiquei aflita com tal situação mas o Ti Zé continuou tranquilamente a fazer o seu trabalho... É que devido à idade já tinha perdido parte da audição. Quando já íamos a uma distância considerável perguntei ao meu filho porque tinha dito boa tarde ti Zé Mortadela e o João respondeu-me na sua inocência de criança "Ó mãe esqueci-me que era fiambre e disse mortadela!". 

Eheheh... Há coisas que ficam e esta tarde é uma delas.

 

Ao relembrar este episódio, quero aqui deixar o meu reconhecimento a uma pessoa que marcou um tempo na ajuda ao próximo.


 Hoje, os meus filhos são já adultos mas continuam generosos na ligação com as pessoas de mais idade e com a VIDA que nos habita...


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás …
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem …
Sei ter o pasmo
Que tem essenciais se uma criança nascer, ao,
Reparasse que nascera deveras …
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo …
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo …
Eu não tenho filosofia, tenho sentidos …
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar …


Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou …
Sejamos simples e calmos,
Como os Regatos e as árvores,
E Deus Amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os Regatos,
E dar-nos-á Verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos! …

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças – tinha
rodas só que ter …
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo Branco …
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
FERNANDO PESSOA, “O Guardador de Rebanhos”, 8-3-1914

terça-feira, 5 de março de 2013

A miga-doce...


 Nestes tempos que atravessamos e em que todos os dias somos confrontados com palavras como crise,  pobreza e desemprego vieram-me à memória imagens da minha infância.
 Todos os dias penso nestas preocupações que tanto perturbam os pais da minha geração (que nos chegam por imagens e sons através dos meios de comunicação) e do que querem para os filhos...


... e penso na minha infância... 
Num tempo em que a delícia da miga-doce preenchia os nossos olhos de sabores inigualáveis... 
Havia lá o pãozinho de leite com fiambre e queijo... Claro que não!!! Mas havia a miga-doce que era o nosso lanche preferido nos dias quentes de verão.
Este manjar dos deuses era feito numa taça com água fresquinha, pedaços de pão, adoçado com açúcar amarelo, com os nossos risos e com a presença tranquila da minha MÃE...


Claro que não imaginávamos o porquê de tal lanche mas hoje, à distância, sei o que levava a minha mãe a preparar-nos tal iguaria. A água era fresquinha e vinha no momento da nascente da quinta, o pão era duro e aproveitado desta forma para não se estragar e o açúcar era colocado em pequenas doses... Num tempo em que não se falava de crise nem de pobreza mas um tempo em que tudo tinha um fundamento, uma razão de ser...


Hoje agradeço à minha mãe e ao tempo de dificuldades em que se vivia por tudo o que me transmitiram pelo exemplo e pela experiência. É graças a todas estas memórias vivas em mim que encaro a vida com um sorriso de esperança e é este sorriso que tento passar aos meus filhos.



E aos meus filhos apenas digo que seja qual for o caminho que queiram seguir que tentem ser os melhores...






Pedra Filosofal



Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
(António Gedeão)





Que nunca nos falte um SORRISO à Vida...