POSTAL DO DIA
Um anjo gigante
1.
O Aurelino Costa é o único anjo que conheço.
Quando o vi pela primeira a dizer o “Cântico Negro”, de José Régio, fiquei aterrado de pasmo e encanto.
O Aurelino é um dos melhores poetas portugueses e o diseur que mais me impressiona.
O Aurelino é também uma série de outras coisas.
Generoso, fraterno, afetivo, utópico, inteligente.
Os seus olhos são vivos.
Podiam ser olhos de criança, olhos espantados de mundo, olhos que ainda não se fartaram da maravilha de estar aqui, do som do vento, das vozes dos animais, da condição humana.
Os seus cabelos desgrenhados, as suas mãos pequenas e os seus braços curtos quando abraçam, abraçam.
2.
O Aurelino é muito baixo, as pessoas antes de o conhecer, antes de ele abrir a boca, são bem capazes de dizer entredentes ou à boca-cheia, ali vai um anão.
E isso foi certamente difícil.
Na sua infância obrigou-o a ir para dentro, para dentro de si próprio onde construiu um mundo paralelo onde só ele existia, ele e as coisas bonitas, o pasto, o céu azul, as vacas do campo, os ninhos de rolas.
Na sua casa de Argivai, na Póvoa de Varzim, mais conhecida como a terra dos anjos, os pais cultivavam o silêncio e a autoridade.
E o Aurelino, mais baixo do que os outros meninos, fazia silêncio. E pensava muito depressa e muito secretamente.
Até que na escola primária a professora pediu-lhe que lesse.
E foi a primeira vez que verdadeiramente se ouviu, a voz como imaginava que fosse, a que lhe saía de dentro.
Era inteligente.
O preferido da professora.
Depois foi mais, chegou ao liceu da Póvoa, fez amigos, lia e escrevia. E foi para a Universidade de Coimbra, fez Direito e continuou a escrever e a ler.
Pediam-lhe para ler nas festas, nos colóquios, nos quartos. Tornou-se uma personagem central.
3.
Aurelino Costa acaba de editar “Casa e Logradouro”, magnífico livro que lançou nas Correntes D’Escritas.
Lemos os poemas e deixamo-nos embalar pelo som do silêncio, da terra, do milagre das pequenas coisas, do bichinho da seda, dos juncos e dos muros, da mãe, dos mortos, do não-sentido.
Quando o vemos, quando o ouvimos, é um gigante.
Um gigante que nasceu na aldeia dos anjos. Um homem com olhos de criança que nos olha espantado com o milagre de estar aqui.
Apaixonado pelas palavras e pela voz que um dia lhe saiu da garganta numa escola primária de uma aldeia em que as crianças viviam paredes-meias com vacas, bois e ovelhas.
4.
O Aurelino Costa a quem a vida permitiu que fosse tudo o que nunca imaginara.
Que tivesse conhecido a Isolina, que se tivesse apaixonado, e que desse espanto nascesse o maravilhoso Raul, seu filho que é hoje um dos mais aclamados pianistas portugueses.
Raúl da Costa, filho de Aurelino, que aos 30 anos tem uma carreira internacional e toca nas melhores salas do mundo provocando “ais” de espanto pelo virtuosismo e por ser um pianista tão próximo das pessoas, tão simpático e tão espantosamente bonito.
Tal como o pai.
4.
E posso contar-te um segredo?
No dia em que eu subi ao palco na Casa da Música estava naturalmente nervoso.
O Aurelino entrou no meu camarim e colocou a sua cabeça na minha cabeça. E ficámos assim um bocadinho como se fosse um abraço de alma.
E disse-me:
“Luís, vai tudo correr bem. Isto é o que eu faço com o meu filho e resulta sempre”.
Nunca me tinham feito nada de parecido.
Nunca um anjo me abraçara antes.
LO