"Quem disse que as crianças são o melhor do mundo não estava, certamente,
enganado. Para que é que elas servem? (Foi isso que perguntou?...) Uma
criança serve para redescobrirmos o encantamento, a transparência, o
riso até às lágrimas e as histórias que se acotovelam na nossa língua.
Serve para brincarmos e corrermos pela casa. Serve para termos uma
desculpa, sempre que chegamos muito atrasados a um sítio que não nos
interessa. Serve para descobrir que há nuvens que se parecem com a
tromba de um elefante. Serve para chorarmos quando revemos o Bambi.
Serve para adormecermos abraçados a ela, no sofá. E serve para descobrir
que o melhor do mundo é sermos (só nós e mais ninguém!) o melhor do seu
mundo. Que ao pé de tudo isso haja um dia (ou outro) em que o karma
parece apostado em nos contrariar, o que é interessa? Afinal, há sempre
um telemóvel à espera de uma mensagem que, podendo não começar com
“Querido”, acaba sempre, no mínimo, com: “Já te disse como gosto de ti?”
São tão pouco entediantes os dias de uma mãe! E ser-se pai é sempre tão
criativo e tão imprevisível!... Afinal, no fi m de um dia normal de
semana, depois de deitarmos um fi lho (e de o vermos a voltar, de novo, a
ser anjo) sentamo-nos, suspiramos como quem, finalmente, está pronto
para descansar e, sem percebermos porquê, enquanto lutamos contra o
sono, só nos vem à memória um refrão mais ou menos gasto: “Querida mãe,
querido pai, então que tal?...”. (Suspire! Outra vez, ainda, por favor!)
Quem disse que o dia da criança era, unicamente, uma vez em cada ano?" (Eduardo Sá)
E tantas outras recordações me povoam de cada dia vivido Convosco... Connosco... Comigo...
"Todas as crianças olham as pessoas nos olhos porque sabem que, partindo
deles, se chega, num instantinho, ao coração. Se o coração das crianças
fosse uma casa, teria uma porta colorida. E janelas, de cortinados aos
folhos e com sardinheiras debruçadas. Seja como for, o coração das
crianças parece uma longa gare, na véspera duma festa. Atravessam-no
corrupios de sentimentos que, logo que desaguam, prontamente abalam, de
seguida. Visto de lá, o mundo não é bem um lugar onde todos co-habitam,
mas um sítio buliçoso, onde se fala e se convive. Onde se trocam
abraços. Onde se esboça um ou outro adeus, contrariado. E as lágrimas
crepitam, aqui e acolá. E onde, ainda, na hora do regresso, depois de se
voar (porque as pessoas, quando se entusiasmam, voam sempre um
bocadinho) não faltará uma janela aberta à sua espera. Para voltarem.
Eu sei que voar é uma forma quase enfadonha de falar do que somos
capazes quando escorregamos do olhar para o coração. Mas fiquemo-nos por
ele. Porque é que as pessoas, logo que crescem, deixam de voar? Eu acho
que as pessoas, quando crescem, se tornam um bocadinho sem-abrigo.
Porque lhes falta uma janela – entreaberta, que seja – à sua espera.
Deixam de acreditar em fadas e em bruxas, mesmo sabendo que elas moram
por aí, fora das histórias. E, se se fiam no Pai Natal, é com vergonha.
Acham que o coração se torna um órgão cor-de-rosa, esconso, com quatro
cavidades. Sem janelas, nem mansardas nem guaritas. A mim, parece-me que
as pessoas, quando crescem -, sem saberem porquê - só brincam às
escondidas. Não choram no cinema. Deixam de saber como se ri até às
lágrimas. E perdem, o jeito - bom e batoteiro - de espreitar as
conclusões antes de folhearem qualquer história. Se não se perdem nas
histórias, as pessoas desistem de voar. Deixam de ter várias vidas. E,
em todas aquelas onde, teimosamente, ainda se barricam, morrem para a
vida eterna. Muito, muito antes, do seu entendimento lhes cochichar que
já morreram. Parece-me que, quando crescem, as pessoas só voam quando
sonham. E isso não é bem voar; é mais dormir. Deixam de saber como é
que, partindo dos olhos, se chega, num instantinho, ao coração.
Tornam-se amigas do silêncio. Passam a viver resgatando memórias. E,
quando é assim, a esperança (que as memórias constroem, peça-a-peça)
fica inquinada de saudade. E desperdiçam as outras vidas (para além da
sua) que, sempre que estamos disponíveis para voar, não deixam de se
pespegar, por perrice, ao pé de nós.
Na verdade, as pessoas, quando crescem, confiam pouco umas nas outras.
Não falam dos medos nem das iras. Não falam das mágoas nem do «logo se
vê» com que dizem «não» devagarinho. Não falam dos seus encantamentos.
Nem das vezes em que se sentem patetas (e como isso, quando acontece aos
solavancos, sabe a leite de creme queimado na hora). Não falam dos
sonhos de que desistiram como se fossem eles, de birrentos, a
encurralá-las nos seus gestos. E não falam das poucas vezes em que não
cabem em si. Nem de como, sem darem por isso, não são nem audaciosas nem
tenazes. As pessoas, quando crescem, dão-se pouco umas às outras. Se as
sentimos com o coração desnorteado no seu peito, sossegando-nos para
elas, dizem-nos: «não é nada!». Sempre que choram por muitas razões ao
mesmo tempo, para simplificar, choram «por nada». E quando se passeiam
pelo desejo, de indecisas, falam como se lhes apetecesse… nada. Muitas
vezes, as pessoas, quando crescem, não mentem nem falam verdade.
Ocultam-na, que é assim uma forma de transformar o silêncio na maior de
todas as mentiras.
Suponho que grande parte das pessoas, quando cresce, se considera apenas
suportável. E, muito pior, imagino que vivam essa singularidade como se
ela fosse um predicado que lhes mereça algum carinho. Suportável –
imagino eu– quer dizer que as pessoas se sentem medianamente aceitáveis e
que, por isso, ocupam um espaço pequenino nas suas relações. Parece-me
que não é muito diferente de se sentirem desajeitadas para voar. Às
vezes, parece–me que sofrem duma epidemia complicada a que elas chamam
«vida real», que faz com que a beleza que pulula à volta delas lhes
pareça misteriosa e insondável. E que é por ela que imaginam que o mundo
vai daqueles que se suportam aos outros, que são insuportáveis. Ora,
quando as pessoas são um bocadinho insuportáveis, eu gosto delas. Estão
entre imaginar que se voa e aprender a voar. Entre não olhar nos olhos e
acreditar que, pela mão de alguém, o coração terá janelas. Digamos que
não tem nem acrobatas nem gaivotas. Não me interessa não ter um nome
para lhes dar. O importante, de verdade, é descobrir que o coração das
pessoas, logo que crescem, deixa de voar. E que elas precisam de se
perder nas histórias e ter várias vidas para que ele volte a ter uma
porta colorida. E janelas, de cortinados aos folhos e com sardinheiras
debruçadas." (Eduardo Sá)
A Vida linda da vida... Linda!!!